A Sociedade
Epicuréia
ou a Casa de Satã
Em Macário, livro de Álvares de Azevedo, Satã, ao chegar a São Paulo, diz
o seguinte:
"- Tenho uma casa aqui na entrada da cidade.
Entrando, à direita, defronte do cemitério."
Essa casa existiu.
Em seu livro E assim nasceu a Escrava Isaura,
José Armelim, neto de B.G., informa que a casa era conhecida por Chácara dos
Ingleses, porque seu primeiro morador foi o inglês John Rademacker.
Ela ficava na Rua da Glória (hoje Praça Almeida
Júnior), defronte a um cemitério de indigentes e de escravos.
Foi nessa casa em que moraram os estudantes Alvares
Azevedo, autor de Se eu morrese amanhã, Bernardo Guimarães e Aureliano
Lessa, entre outros.
A casa tornou-se famosa porque nela, em 1849, os
estudantes da São Francisco fundaram a Sociedade Epicuréia. Na casa,
uma turma de rapazes "pintou o diabo e celebrou maluquices, alarmando a
pacata cidadezinha de São Paulo", registra o escritor Raimundo de Menezes na
edição de 14.06.1946 do Estado de S. Paulo.
Bernardo de Guimarães era um dos principais
animadores da Casa de Satã.
A Sociedade Epicuréia inspirava-se no romantismo
do excêntrico poeta George Gordon Byron (1788-1824). Lord Byron, como era
conhecido, cultivava a beleza do horror, do repulsivo, do monstruoso, do
satânico. Cultivava a energia rebelde, numa contraposição à estética
clássica, à passividade, à inércia.
Byron teve grande influência em toda a Europa e
repercurtiu-se também nos rapazes da Faculdade São Francisco, principalmente em
Álvares de Azevedo.
As sessões da Sociedade Epicuréia - realizadas na
Chácaras dos Ingleses e em outras repúblicas da periferia - abalaram a
pacata São Paulo.
Couto de Magalhães conta que "Bernardo,
Azevedo e [Aureliano] Lessa dispunham de tudo para o cerimonial da orgia. Tapetes,
indumentária, caveiras, ossos humanos, trípodes, caçoilas, armações
funerárias etc. Na Epicuréia dominavam reflexos de satanismo".
As mulheres não participam das sessões.
"Mulheres só eram permitidas nas libertinagens sem cerimonial", explica
Magalhães.
Bernardo Guimarães exagerava no álcool,
principalmente o éter. "Ficou semanas inteiras sepulto, com os comparsas,
nos comodos, bebendo sem parar. Registraram-se cenas indecorosas, impossíveis de
serem narradas. E houve desregramentos piores, de horrorizar. As sessões
terminavam quando não havia mais bebidas", relata Magalhães.
O cerimonial obedecia algumas orientações
byronianas.
Na casa eram soltos gatos pretos, sapos, corujas,
morcegos, urubus, cobras, lagartixas e tudo quanto é bicho do folchore do horror.
Entre uma declamação e outra de poemas, o vinho
era servido em caveiras roubadas do cemitério de indigentes. Havia brindes a
Baco, a Epicuro e a Sileno.
Do lado de fora, sem entender nada e com medo,
ficavam os escravos dos estudantes.
Em algumas sessões, havia encenações d'A
Divina Comédia. Em outras, enquanto alguns estudantes corriam pela casa
imitando animais, Bernardo cantava canções macabras e Álvares de Azevedo lia
contos de horror.
Os excessos alcóolicos dessas farras prejudicaram
a saúde de muitos estudantes, levando-os à morte precoce. Esse não foi o caso
de B.G., que morreu aos 69 anos.
O crítico literário Antônio Cândido, no Estado
de S. Paulo de 25.01.1954, assim sintetizou a Sociedade Epicuréia: "Ponto de
encontro entre a literatura e a vida, onde os jovens procuravam dar realidade às
imaginações românticas".
Leia também:
BG em São Paulo (1)
BG em
São Paulo (2)
BG em
São Paulo (3)
O triunvirato da Academia
Aureliano Lessa (poema)
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A Orgia
dos Duendes
Bernardo Guimarães
Meia-noite soou na floresta
No relógio de sino de pau;
E a velhinha, rainha da festa,
Se assentou sobre o grande jirau.
Lobisome apanhava os gravetos
E a fogueira no chão acendia,
Revirando os compridos espetos,
Para a ceia da grande folia.
Junto dele um vermelho diabo
Que saíra do antro das focas,
Pendurado num pau pelo rabo,
No borralho torrava pipocas.
Taturana, uma bruxa amarela,
Resmungando com ar carrancudo,
Se ocupava em frigir na panela
Um menino com tripas e tudo.
Íntegra do poema
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