

BAIRRO
ALTO
Bairro
Alto,
Alta madrugada.
Caves, luzes-negras,
cada qual um sitio.
Muitas, muitas, muitas vozes.
Fumadores:
Da noite,
Do frio,
Da coca,
Do tempo,
Da sorte,
Do vazio,
Da solidão,
Do tédio,
Da juventude,
Do tesão.
Dados da vida noctívaga.
Minis-orbis comungam.
Ali, todos pardos na noite. Democracia racial?
De dia pretos, amarelos, brancos, mestiços.
Varianças, diferenças de cores.
Mais aqui, menos acolá, azeite
e água.
Chegada a luz, tudo pára: água
e azeite, claramente.
Águas de África,
azeite lusitano.
Odivelas,
25/11/1995.

C
A N T O
Canto
que me encanta,
canto que trago comigo.
Ouço-o mesmo quando aqui não estou;
apego-me a cantar o canto que não é meu.
Assobio-o, muitas vezes, no despertar,
no labor, no lazer, no pensar.
Canto do preso.
Canto vigoroso.
Canto exato.
Repetido mas não repetitivo.
Canto que não cansa,
fiz desse canto meu canto.
Agora, dois são os presos a cantar;
o preso da gaiola de lá, limitado, canta
porque sua vida é cantar.
Canta não para que eu ouça, sei-o.
Canta e quem dera... livre, cantasse com os seus,
ecoando a sua liberdade.
O preso da gaiola de cá,
canta o canto imitado do cantador de lá,
almeja uma certa liberdade,
almeja os seus que nem sabe quem são,
algo além da liberdade, algo indefinidamente desejado...
O preso de cá, com o canto do preso de lá, voa;
voam juntos, então, nas ondas do canto de quem
nem sabe que encanta e certamente muitos mais faz cantar.
A música, linguagem universal,
enleva, une, ameniza, alegra, traz amor, paixão,
vivifica.
O cantador prisioneiro de lá, não sabe que foi preso
pelo mavioso canto e preso continuará por ser
perpetuamente cantor...
Os algozes, também presos de suas artificiais
construções
e vivências, trazem gravado na memória escondida,
o campo perdido, a liberdade afogada,
a natureza, o canto reprimido.
O prisioneiro de cá,
aprendeu a cantar o canto imitado do prisioneiro de lá;
sonha suas fantasias que não soube realizar;
preso à incoerência,
atado às teias que criou,
não pôde se libertar...
Obrigações, responsabilidade, papéis sociais,
vidas a si dependuradas, metas dos outros,
marcas da fé religiosa que não levou à liberdade.
São as grades que tiram o encanto e o canto
original do prisioneiro de cá.
Canto que me encanta,
canto que trago comigo.
Canto o canto imitado do cantador de lá.
O preso de lá, no entanto,
livre, muito mais livre que os falsos algozes,
enreda, inocente, com seu canto,
estes prisioneiros de almas cinzentas,
mudas porque nunca poderão cantar...
O prisioneiro de cá se sente livre
quando canta o canto livre do prisioneiro de lá.
Odivelas, l 5.março. 1996.
Sábado, 21:45 h.

E
U S
Contraditórios,
rivalizam opiniões:
santo e pecador. Não só:
santos, meio-santos, menos santos.
Muito pecador, médio, pouco pecador.
Pecado venial, pecado mortal.
Tudo que pensam,
a clivagem vem,
forte ou amena,
santos e pecador os espectros.
Sabem que a vida é mais que isso.
Existir é mais que isso.
Realizar-se é mais que isso.
Amar é mais que isso.
Mas Santo e Pecador são invocados.
Vício maniqueísta,
que descolore,
reduz,
limita.
Aqui, a amizade: desejá-la, pecado;
ajudá-la, santo;
cultivá-la, meio pecado;
referí-lá, muito santo.
Acolá, gostos:
se é prazer, pode ser pecado;
se de criança, puro, santo.
Vida enfora,
revelação preto-e-branco
de um mundo de cores.
Matizes.
Serem maniquéistas os fazem infelizes,
pois, juízo crítico,
a vida e a morte,
duo inquietante,
não cabe nessa pobre moldura.
Odivelas, l5.junho.1996.
23:30 h.

M
AR C A S
Barreiras
muitas conheci.
De pequeno, timidez,
medo, isolamento, solidão.
Caminhos ilegítimos de quem não era mãe.
Oral mancha psíquica no inocente miúdo,
do subreptício aproveitador.
O estupor no olhar do quebranto colocado.
A dor de garganta, o ouvido inflamado a escorrer pús
Solução de uma medicina involuída e sua iatrogênese
Não descobriram que não são os fatos que ficam,
são as marcas que deixam.
De infante, imagens de pequeno,
reforçaram esse mundo criado.
Medo de briga;
medo de bronca;
medo da turma.
Medo de surgir.
Medo de falar.
Medo de manifestar.
Medo de ter opinião.
Noutra fase, sexo e medo,
incontroláveis impulsos,
juntos a caminhar.
Afogar a realidade, construir mais fantasias.
Os caminhos impingidos não foram solução:
estudo, trabalho, dinheiro, fé, casamento...
Não são os fatos que ficam, são as marcas que deixam.
Grito atrasado,
com mulher, compromissos, filhos à mão;
Papel de pai, supridor, infalível marido.
Se não perto, para não ser eu, para cumprir meu papel,
nalgum lugar Grito bradei,
confissões fiz,
do que queria e gostava noticiei.
Cúmplices, amigas, sem compreender, percebam:
não são os fatos que ficam, são as marcas que deixam.
Odivelas, 06.abril.1996.
09:35 da manhã.

TEJO
E LISBOA
Evocativo,
imenso e vivo, traz em si uma sereia.
Antanho, baía calma, acolheu
fenícios, romanos, mouros e cristãos,
presenças intersticiais em sua vida.
Acarinha há muito, sua protetora,
fortaleza de Belém.
Em terra, viu a seus pés crescer uma nação.
Constante e teimoso, corre inexorável.
Barcos o singram,
deixando rastros tais como cordas,
as quais o Sanção das águas logo desfaz.
Amarra atroz, ao menos as pontes lhe tocam
em poucos sitios.
Só as aves sabem-no bem
reverenciar.
Veia aberta,
recebe e conduz tantos descartes,
metais pesados, efluentes da indústria,
restos dos campos.
dejetos das concentradas
urbes
(na conurbação, tornar-se-ão campos de
concentração?)
Peixes contaminados e raros.
Seu volume e qualidade,
quando querem,
indiferentes hispanos,
picam - lhe mais veneno...
Inda hoje quando tentam apagar-lhe o vigor,
imponente, toca aos olhos:
De dia. belo.
No pôr-do-sol, indescritível.
Ao luar, romântico.
Evocativo, imenso e vivo,
Tejo soberbo,
não corre para a península, mas para o mar;
vocação lusitana, que do rio soube copiar.
Evocativo, remete a histórias, lendas, romances.
Imenso, estuário ousado,
comunga com o oceano.
Vivo, renova-se no correr perpétuo.
De ti, Tejo,
tantos sentimentos vêm-me para o saudar ...
ocorre-me, sobretudo, encomiar-lhe
a sereia do Tejo,
Lisboa sem par !
Odivelas, 06.abril. 1996.
Domingo de manhã, 08:10 h.


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