Para construir um desejo sólido de libertação
do ciclo de existência, devemos examinar detalhadamente a nossa condição
e considerar as razões para querer escapar. A primeira coisa a reconhecer
é que os nossos corpos e as nossas mentes são predispostos
ao sofrimento. As Quatro Verdades Nobres —o primeiro ensinamento do Buda
— abordam este assunto diretamente. Estas verdades são a verdade
do sofrimento, a verdade da origem do sofrimento, a verdade da cessação
do sofrimento e a verdade do caminho que leva à cessação.
A decisão do Buda de ensinar as verdades nesta seqüência
tem grande importância para a nossa prática. Para enfatizar
a importância da compreensão de que o que normalmente consideramos
como felicidade é, de fato, sofrimento, o Buda ensinou primeiro
a verdade do sofrimento.
Quando você percebe que caiu em um oceano de sofrimento, irá
desenvolver o desejo de se libertar daquele sofrimento. Com este objetivo,
primeiro você irá ver que é necessário eliminar
a origem do sofrimento. Quando você procura a origem do sofrimento,
encontra as ilusões e as ações kármicas. Então,
será capaz de perceber que o ciclo de existência e os seus
sofrimentos são produzidos pelas suas próprias ações
kármicas, que, por sua vez, são impelidas pelas ilusões,
as quais estão enraizadas na crença errônea na solidez
ou na existência inerente do ego. Se analisarmos como pensamos no
ego, descobriremos que tendemos a pensá-lo como existindo intrinsecamente,
independente da mente e do corpo. E ainda assim, quando procuramos localizá-lo,
ele nos engana. O Buda ensinou que não existe tal ego e que a nossa
crença em um ego independente é a causa que está na
raiz de todos os sofrimentos.
Entre as muitas religiões diferentes, um grupo não aceita
nenhuma vida após a morte e um grupo aceita. Aquelas que aceitam
a vida após a morte podem ser divididas em dois grupos: um afirma
que as ilusões e as máculas da mente podem ser eliminadas
e purificadas, enquanto o outro acredita que não. Este último
grupo afirma que, enquanto a mente existe, nós nunca podemos purificá-la
e separá-la das suas ilusões. Conseqüentemente, a eliminação
da ilusão significa que a própria mente deve ser eliminada.
No grupo que acredita que a mente pode ser finalmente separada das suas
máculas e ilusões —isto é, que acredita no nirvana
—, algumas identificam o nirvana como uma espécie de lugar que é
totalmente livre de sofrimentos, um local agradável em um domínio
sublime. Outras identificam o nirvana como o estado da mente no qual as
ilusões estão totalmente dissolvidas na realidade. O nirvana
existe na mesma base da própria mente. Esta é a visão
budista.
Para entender a primeira verdade, a do sofrimento, a pessoa deve meditar
sobre o sofrimento. Nós nos vemos como a coisa mais preciosa do
universo e nos tratamos como se fôssemos mais preciosos do que um
Buda. Porém, esse tipo de apego ainda não levou à
perfeita felicidade. Desde o início dos tempos, temos atravessado
o ciclo de existência e tido um número infinito de vidas.
Da infância até agora, passamos por altos e baixos, por todos
os tipos de frustrações e confusões. As nossas vidas
estão cercadas de problemas, sofrimentos, aflições
e frustrações. Finalmente, esta vida irá terminar
com a morte e, depois daquilo, não temos nenhuma certeza de para
onde ela irá nos levar. Realmente, devemos examinar se existe uma
maneira de nos livrarmos desta existência insatisfatória.
Se a vida surgisse independente de causas e condições e terminasse
sem continuidade futura, nós não teríamos como escapar.
Se aquilo fosse verdade, deveríamos viver segundo princípios
hedonistas. Porém, sabemos que o sofrimento é algo que realmente
não desejamos e que, se for possível nos libertarmos totalmente
dele, vale a pena alcançarmos esta liberdade.
O que nos ata ao ciclo de existência e sofrimento são
as ações kármicas do corpo, da fala e da mente. Como
sabemos, mesmo em um instante, podemos acumular estas ações
e aquele instante pode nos atirar em um domínio inferior. Este cativeiro
está enraizado na mente indômita e é causado pela nossa
própria ignorância, pela nossa própria compreensão
errônea do ego. Esta noção instintiva sobre um tipo
de ego independente e isolado nos induz a nos entregarmos a todo tipo de
ações negativas, o que resulta em sofrimento. Esta atitude
egoísta há muito tempo tem sido o nosso mestre; sempre
obedecemos às suas ordens. Devemos compreender que não nos
beneficiamos seguindo os seus conselhos. Enquanto fizermos isso, não
existe nenhuma chance de felicidade. Nesta conjuntura, devemos examinar
se é ou não possível superar esta ilusão.
A própria experiência do nascimento é dolorosa
tanto para a mãe quanto para a criança. Depois que nascemos,
a ilusão tem um controle instintivo sobre os nossos corpos e as
nossas mentes, impedindo que a mente se dirija para a prática do
Dharma. Os nossos próprios corpos tornam-se causas para o surgimento
de ilusões. Por exemplo, quando o corpo está enfraquecido
por determinadas doenças, você fica aborrecido e, quando está
saudável, você tem apego. O nascimento é inevitavelmente
seguido pela morte e a morte é seguida por um outro renascimento.
Se isso não fosse o bastante, o próprio renascimento serve
como a base para sofrimentos adicionais, porque este renascimento propícia
a estrutura para ilusões adicionais, as quais motivam novamente
as ações negativas que têm conseqüências
kármicas.
Esta existência humana, que consideramos preciosa, surgiu de
algo asqueroso. Os nossos corpos são produzidos pela combinação
dos fluidos regenerativos dos pais, o sêmen e o óvulo. Se
encontrarmos sangue e sêmen em um pano ou uma gota derramada no chão,
sentimos repulsa. Contudo, continuamos a adorar os nossos próprios
corpos. Tentamos cobrir os nossos corpos com roupas elegantes e disfarçar
o cheiro com perfume. Os nossos pais também surgiram das mesmas
substâncias, assim como os pais e os avós deles. Se remontarmos
à sua origem, veremos que o corpo é o produto final de todas
essas substâncias impuras. Se formos um passo adiante, podemos ver
que o corpo é como uma máquina para a produção
de excremento e de urina. Quando você vê minhocas que comem
lama por uma ponta e depois a excretam pela outra, é realmente muito
deplorável. O mesmo é verdadeiro com os nossos próprios
corpos; continuamos a comer e a excretar. Um corpo assim não é
para ser tratado com carinho.
Além disso, os seres humanos têm o potencial de ameaçar
a própria sobrevivência da terra. Em conseqüência
das suas mentes indômitas, pessoas como Stalin, Hitler e Mao não
apenas acumularam estoques ilimitados de ações negativas
como também afetaram as vidas de inúmeras pessoas, causando
angústia, sofrimento e tormento.
Depois, há o sofrimento do envelhecimento. O envelhecimento
surge gradualmente; de outro modo, não seríamos absolutamente
capazes de suportá-lo. Quando envelhecemos, perdemos a flexibilidade
que tínhamos quando éramos jovens; não conseguimos
mais digerir os alimentos que gostávamos. Ficamos incapazes de nos
lembrarmos dos nomes das pessoas e das coisas que costumávamos recordar
vivamente. Os nossos dentes caem gradualmente, assim como o nosso cabelo
e perdemos a nossa visão e a nossa audição. Finalmente,
atingimos um estágio de declínio no qual as pessoas começam
a achar repulsivo o simples fato de olharem para nós. Quando você
atingiu um estágio no qual precisa da ajuda de outras pessoas, elas
se afastarão de você.
A seguir, existe o sofrimento da doença. O sofrimento físico
e a ansiedade mental aumentam e você precisa passar dias e noites
abatido pela enfermidade. A doença o impede de comer o alimento
do qual você realmente gosta e de fazer as coisas que gosta. Você
precisa tomar remédios com um gosto...
[continua]