CAPÍTULO 3

A OPORTUNIDADE


Imagine um vasto oceano com um leme à deriva sobre ele. Nas profundezas do oceano, nada uma solitária tartaruga cega que vem à tona para respirar uma vez a cada cem anos. Quão extraordinário seria para a tartaruga vir à tona com a sua cabeça atravessada no buraco do leme? O Buda dizia que conseguir um precioso renascimento humano é tão raro quanto aquilo.
Diz-se que até mesmo os deuses invejam a nossa existência humana, porque é a melhor forma de existência para a prática do Dharma. Neste mundo há algo como cinco bilhões de pessoas e todas elas são seres humanos. As suas mãos, cérebros, membros e corpos são quase iguais. Porém, se examinarmos se todos os humanos têm a oportunidade para praticar, então descobriremos uma grande diferença. Nós estamos livres das circunstâncias adversas que impedem a prática do Dharma, circunstâncias adversas tais como renascer com visões erradas, renascer como um animal, um espírito, um ser demoníaco ou como um deus viciado no prazer, ou como um humano que tem dificuldade em ouvir os ensinamentos, ou nascer em um lugar onde não há nenhum ensinamento budista disponível. Outras circunstâncias adversas seriam nascer em uma terra bárbara onde os pensamentos de sobrevivência consomem todos os recursos da pessoa ou em uma época na qual nenhum Buda apareceu.
Pelo lado positivo, nós somos dotados de muitas coisas que tornam a nossa prática possível. Por exemplo, nascemos como humanos capazes de reagir aos ensinamentos, em uma terra onde eles estão disponíveis. Não cometemos nenhum crime hediondo e temos um grau de fé nos ensinamentos budistas. Embora não tenhamos renascido no mundo quando o Buda estava vivo, temos encontrado mestres espirituais que podem seguir a linhagem dos ensinamentos que receberam desde os tempos de Buda. O Dharma permanece estável e florescente, porque existem praticantes que seguem estes ensinamentos. Também vivemos em uma época na qual existem benfeitores generosos que proporcionam aos monges e às monjas o que é necessário para a prática, tal como alimento, roupa e abrigo.
Os ensinamentos do Buda beneficiam um número infinito de seres que, como um resultado da prática, alcançam compreensões elevadas e eliminam as ilusões das suas mentes. Porém, se tivéssemos renascido como um animal ou como um ser demoníaco ou como um espírito voraz (descritos no Capítulo 5), a presença da doutrina do Buda neste mundo absolutamente não nos ajudaria. Por exemplo, o Buda Shakyamuni nasceu na India, tornou-se completamente iluminado e girou a roda do Dharma três vezes. Se nós tivéssemos obtido uma preciosa vida humana naquela época e tivéssemos sido cuidados pelo Buda, então o nosso destino atual seria totalmente diferente. Poderíamos ter escapado do renascimento nesta época. Porém, este não foi o caso e o ensinamento dele não nos beneficiou até agora. É uma sorte não estarmos nas formas inferiores. da existência, mas simplesmente renascer em uma forma humana e estar livre da escravidão da existência não-humana não é suficiente. Suponha que tivéssemos renascido em um lugar onde o Dharma floresce, mas, se nascêssemos sem as nossas faculdades mentais completas, o Dharma não nos beneficiaria. As incapacidades físicas não impedem necessariamente a prática do Dharma, mas sem o uso da mente, isso seria impossível. Mesmo que não tivéssemos nenhuma incapacidade, se tivéssemos nascido em uma comunidade na qual as pessoas negam a lei de causa e efeito, os nossos intelectos teriam sido preenchidos com visões erradas. Porém, este não é o caso. Se tivéssemos nascido nas épocas nas quais não havia nenhuma doutrina budista, então não estaríamos em um caminho de transformação da mente para o fim do sofrimento. Mas este também não é o caso. Devemos reconhecer a sorte de termos renascido em uma época na qual os ensinamentos do Buda existem. Precisamos refletir sobre isso, alegrando-nos com a nossa sorte de sermos livres dessas desvantagens. Ao pensarmos no que foi dito nestas linhas, finalmente seremos capazes de compreender que obtivemos uma forma de existência humana que é incomparável. Se considerarmos isto de uma maneira detalhada, finalmente reconheceremos a verdadeira importância da existência humana. Decidiremos nos comprometermos fortemente com uma prática séria do Dharma.
Diz-se que a doutrina do Buda Shakyamuni permanecerá por cinco mil anos. Se renascermos como um humano depois disso, não nos beneficiaremos com isso. Porém, nós renascemos neste mundo durante uma era de iluminação na qual a doutrina do Buda ainda permanece. Para querer transformar a mente, você deve estar persuadido a tirar total proveito da sua vida como um humano.
Até este momento, temos vivido as nossas vidas, temos nos alimentado, temos encontrado abrigo, temos usado roupas. Se continuarmos desta maneira, simplesmente comendo por amor à vida, que significado isso daria às nossas vidas? Todos nós obtivemos uma preciosa forma humana, mas simplesmente obter uma forma humana não é nada de que possamos nos orgulhar. Existe um número infinito de outras formas de vida no planeta, mas nenhuma delas está envolvida no tipo de destruição ao qual os humanos se entregam. Os seres humanos põem em perigo toda a vida no planeta. Se deixarmos a compaixão e uma atitude altruísta guiarem as nossas vidas, seremos capazes de alcançar grandes coisas — algo que as outras formas de vida não são capazes de fazer. Se formos capazes de usar esta preciosa forma humana de uma maneira positiva, isso terá valor a longo prazo. Então, a nossa existência humana se tornará verdadeiramente preciosa. Entretanto, se usarmos o nosso potencial humano, a capacidade do cérebro, de maneiras negativas, para torturar pessoas, explorar os outros e causar destruição, então a nossa existência humana será um perigo para nós mesmos no futuro, bem como para as outras pessoas imediatamente. A existência humana, se usada destrutivamente, tem o potencial de aniquilar tudo o que conhecemos. Ou ela pode ser a fonte para nos tornarmos um Buda.
Até agora, não avançamos muito no nosso processo espiritual. Pergunte a si mesmo: “Que ações saudáveis eu tenho feito até agora, que práticas tenho exercido para domar a mente e me tornar confiante no futuro?” Se você não encontrar nada que poderia lhe dar uma sensação de certeza em relação ao seu destino futuro, então todo o ato de comer para manter a sua vida até agora é bonito, mas um desperdício. Como diz o poeta indiano Shantideva do século VIII, a única razão do nosso nascimento teria sido simplesmente causar dor e dificuldade à nossa mãe; não teria servido para nenhum outro objetivo.
Shantideva diz que, tendo conseguido esta preciosa forma humana, eu seria estúpido se não meditasse e acumulasse virtudes. Se, por preguiça, eu continuar adiando a prática, no momento da morte carregarei o peso do grande remorso e da preocupação com os sofrimentos que terei de suportar nas formas inferiores de existência. Se, tendo obtido uma existência humana tão valiosa, nós a desperdiçarmos, então seria como ir à terra das jóias e voltar com as mãos vazias. Reflita sobre o fato de que todos os grandes mestres do passado que alcançaram a iluminação em uma única vida — Nagarjuna, Asanga e grandes mestres tibetanos como Milarepa — tiveram exatamente a mesma vida humana que nós obtivemos agora. A única diferença entre nós e eles é que não temos a iniciativa deles. Meditando sobre a raridade das nossas circunstâncias, podemos cultivar uma motivação semelhante.
Embora um cachorro possa viver em um lugar onde o Dharma floresce, ele não pode beneficiar-se ativamente disso. Os animais são ainda mais fortemente guiados por ilusões e não têm a nossa capacidade de escolher entre diferentes tipos de comportamento. Eles se entregam mais fàcilmente a ações e a pensamentos negativos, como a raiva e o desejo, e têm mais dificuldade com as ações virtuosas. Se eu renascer
 

como um animal ou qualquer outra forma inferior de existência, como terei a oportunidade de praticar o Dharma? É muito difícil acumular virtudes, eu estaria continuamente acumulando ações não-virtuosas e assim, até mesmo após a morte, eu estaria girando em uma reação em cadeia de constantemente renascer nas formas inferiores de existência. Se for o caso de que até uma ação negativa momentânea tem o potencial de causar renascimento nas formas inferiores de existência por inúmeras eras, então, como conseqüência de infinitas ações não-virtuosas que acumulei no passado, como posso duvidar que renascerei em formas inferiores de existência? Uma vez que você renasce nos domínios inferiores de existência, mesmo que o karma que causou este renascimento possa ser exaurido pelos sofrimentos que você suporta, quase não há esperança de se libertar desses domínios inferiores porque, em um ciclo vicioso, você estará se entregando a ações negativas que causarão outro renascimento ainda mais inferior. Tendo refletido sobre a dificuldade de obter tal existência humana e refletindo sobre a estupidez de desperdiça-la, você deveria tomar a decisão de fazer o melhor uso de sua vida empreendendo a prática do Dharma.
Normalmente, os Budistas dizem que a nossa existência humana comum requer, como sua causa principal, a pura observação da ética em uma vida anterior. Além disso, especialmente para alcançar uma forma humana com a capacidade de praticar o Dharma, é muito importante que o ato ético em si seja completado com outras ações, como a generosidade e as e orações evocativas, na vida anterior. Se você levar isso em consideração, vai descobrir que é muito raro que alguém possua todos esses fatores. Pensando na raridade da sua causa, você perceberá como é difícil obter uma preciosa forma humana.
Se você comparar a existência humana com outros tipos de existência, tal como a dos animais, existem muito mais animais e insetos do que humanos. Mesmo dentro da existência humana, uma pessoa cuja vida seja dotada de tempo suficiente e de oportunidade para praticar o Dharma é realmente muito rara. Se você entende  a importância desta preciosa vida humana, então todas as outras compreensões virão naturalmente. Se alguém, que tem ouro em sua mão, atira-o fora e depois reza para conseguir mais ouro amanhã, essa pessoa tornar-se-ia alvo de risadas. Do mesmo modo, embora possamos estar idosos e fisicamente fracos, somos muito superiores em nossa capacidade de praticarmos o Dharma do que outros seres sensíveis. Podemos, pelo menos, recitar o mantra do Bodhisattva da Compaixão, OM MANI PADME HUM. Mesmo se uma pessoa está no momento de morrer, ela ainda tem a capacidade de pensar e de cultivar pensamentos virtuosos.
As atividades do Buda — desde que ele começou a cultivar o desejo de ajudar outras pessoas até a acumulação de mérito e a obtenção final da iluminação — foram todas realizadas por amor a outros seres sensíveis. O bem-estar de outros seres sensíveis se classifica em dois tipos: o bem-estar temporário, que é a obtenção de um renascimento favorável, e o bem-estar definitivo, que é a obtenção da libertação e do estado onisciente. Todos os ensinamentos associados à obtenção de um renascimento favorável no futuro são considerados como pertencentes à categoria de pequeno alcance. Quando falamos da nossa meta definitiva, distinguimos dois tipos: libertação do sofrimento e onisciência. Todos os ensinamentos relacionados à prática para alcançar a libertação pessoal são ensinamentos de médio alcance. Para este objetivo, praticantes da categoria de médio alcance envolvem-se na prática da ética, da concentração e da sabedoria e, depois, eliminam as ilusões e alcançam a libertação do sofrimento e do renascimento. Todos os ensinamentos que delineiam as técnicas para a obtenção da onisciência da Fraternidade Búdica, incluindo tanto o veículo sutra quanto o tântrico, estão relacionados aos praticantes de grande alcance. Um ser da categoria de grande alcance é alguém cuja mente é motivada por grande compaixão por todos os outros seres sensíveis e que deseja alcançar a iluminação para o bem deles. Assim, um grupo só consegue pensar em uma vida futura; estas são pessoas de pequeno alcance. As pessoas do segundo grupo não estão preocupadas apenas com os assuntos da vida futura, são capazes de pensar em algo mais distante, na libertação do renascimento; estes são seres da categoria de médio alcance. Outras pessoas não se ocupam apenas com o seu próprio bem-estar; são mais corajosas. Interessam-se também pelo bem-estar de outros seres sensíveis; estes são seres da categoria de grande alcance.
Tsong-kha-pa diz que, embora dividamos a prática em três tipos: a prática de alcance inicial, a de médio alcance e a de grande alcance, as duas primeiras estão incluídas nas práticas de grande alcance, porque são como uma preparação para a prática de grande alcance. Quando treinamos as nossas mentes para compreender a importância da nossa preciosa vida humana e a sua raridade, decidimos tirar proveito disso. Os nossos corpos, compostos de carne, sangue e ossos, são como a bananeira, que não tem cerne, e são a fonte de todo tipo de sofrimento físico. Conseqüentemente, não deveríamos nos preocupar tanto com os nossos corpos. Ao contrário, seguindo o exemplo dos grandes bodhisattvas, deveríamos tornar o nosso nascimento humano significativo e usarmos os nossos corpos para o beneficio de outros seres sensíveis.
Em outras palavras, oportunidades preciosas e raras nos cercam e deveríamos reconhecer o seu valor. Obtivemos esta preciosa forma humana dotada com estas características especiais. Se for para desperdiçá-la entregando-se simplesmente aos assuntos e às ações triviais, seria triste. Tendo compreendido o valor da preciosa forma humana, é importante tomar a decisão de capitalizar e utilizar isso para a prática do Dharma. Caso contrário, dificilmente haveria qualquer diferença entre as nossas vidas como seres humanos e aquelas dos animais.

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