Imagine um vasto oceano com um leme à deriva sobre ele. Nas
profundezas do oceano, nada uma solitária tartaruga cega que vem
à tona para respirar uma vez a cada cem anos. Quão extraordinário
seria para a tartaruga vir à tona com a sua cabeça atravessada
no buraco do leme? O Buda dizia que conseguir um precioso renascimento
humano é tão raro quanto aquilo.
Diz-se que até mesmo os deuses invejam a nossa existência
humana, porque é a melhor forma de existência para a prática
do Dharma. Neste mundo há algo como cinco bilhões de pessoas
e todas elas são seres humanos. As suas mãos, cérebros,
membros e corpos são quase iguais. Porém, se examinarmos
se todos os humanos têm a oportunidade para praticar, então
descobriremos uma grande diferença. Nós estamos livres das
circunstâncias adversas que impedem a prática do Dharma, circunstâncias
adversas tais como renascer com visões erradas, renascer como um
animal, um espírito, um ser demoníaco ou como um deus viciado
no prazer, ou como um humano que tem dificuldade em ouvir os ensinamentos,
ou nascer em um lugar onde não há nenhum ensinamento budista
disponível. Outras circunstâncias adversas seriam nascer em
uma terra bárbara onde os pensamentos de sobrevivência consomem
todos os recursos da pessoa ou em uma época na qual nenhum Buda
apareceu.
Pelo lado positivo, nós somos dotados de muitas coisas que tornam
a nossa prática possível. Por exemplo, nascemos como humanos
capazes de reagir aos ensinamentos, em uma terra onde eles estão
disponíveis. Não cometemos nenhum crime hediondo e temos
um grau de fé nos ensinamentos budistas. Embora não tenhamos
renascido no mundo quando o Buda estava vivo, temos encontrado mestres
espirituais que podem seguir a linhagem dos ensinamentos que receberam
desde os tempos de Buda. O Dharma permanece estável e florescente,
porque existem praticantes que seguem estes ensinamentos. Também
vivemos em uma época na qual existem benfeitores generosos que proporcionam
aos monges e às monjas o que é necessário para a prática,
tal como alimento, roupa e abrigo.
Os ensinamentos do Buda beneficiam um número infinito de seres
que, como um resultado da prática, alcançam compreensões
elevadas e eliminam as ilusões das suas mentes. Porém, se
tivéssemos renascido como um animal ou como um ser demoníaco
ou como um espírito voraz (descritos no Capítulo 5), a presença
da doutrina do Buda neste mundo absolutamente não nos ajudaria.
Por exemplo, o Buda Shakyamuni nasceu na India, tornou-se completamente
iluminado e girou a roda do Dharma três vezes. Se nós tivéssemos
obtido uma preciosa vida humana naquela época e tivéssemos
sido cuidados pelo Buda, então o nosso destino atual seria totalmente
diferente. Poderíamos ter escapado do renascimento nesta época.
Porém, este não foi o caso e o ensinamento dele não
nos beneficiou até agora. É uma sorte não estarmos
nas formas inferiores. da existência, mas simplesmente renascer em
uma forma humana e estar livre da escravidão da existência
não-humana não é suficiente. Suponha que tivéssemos
renascido em um lugar onde o Dharma floresce, mas, se nascêssemos
sem as nossas faculdades mentais completas, o Dharma não nos beneficiaria.
As incapacidades físicas não impedem necessariamente a prática
do Dharma, mas sem o uso da mente, isso seria impossível. Mesmo
que não tivéssemos nenhuma incapacidade, se tivéssemos
nascido em uma comunidade na qual as pessoas negam a lei de causa e efeito,
os nossos intelectos teriam sido preenchidos com visões erradas.
Porém, este não é o caso. Se tivéssemos nascido
nas épocas nas quais não havia nenhuma doutrina budista,
então não estaríamos em um caminho de transformação
da mente para o fim do sofrimento. Mas este também não é
o caso. Devemos reconhecer a sorte de termos renascido em uma época
na qual os ensinamentos do Buda existem. Precisamos refletir sobre isso,
alegrando-nos com a nossa sorte de sermos livres dessas desvantagens. Ao
pensarmos no que foi dito nestas linhas, finalmente seremos capazes de
compreender que obtivemos uma forma de existência humana que é
incomparável. Se considerarmos isto de uma maneira detalhada, finalmente
reconheceremos a verdadeira importância da existência humana.
Decidiremos nos comprometermos fortemente com uma prática séria
do Dharma.
Diz-se que a doutrina do Buda Shakyamuni permanecerá por cinco
mil anos. Se renascermos como um humano depois disso, não nos beneficiaremos
com isso. Porém, nós renascemos neste mundo durante uma era
de iluminação na qual a doutrina do Buda ainda permanece.
Para querer transformar a mente, você deve estar persuadido a tirar
total proveito da sua vida como um humano.
Até este momento, temos vivido as nossas vidas, temos nos alimentado,
temos encontrado abrigo, temos usado roupas. Se continuarmos desta maneira,
simplesmente comendo por amor à vida, que significado isso daria
às nossas vidas? Todos nós obtivemos uma preciosa forma humana,
mas simplesmente obter uma forma humana não é nada de que
possamos nos orgulhar. Existe um número infinito de outras formas
de vida no planeta, mas nenhuma delas está envolvida no tipo de
destruição ao qual os humanos se entregam. Os seres humanos
põem em perigo toda a vida no planeta. Se deixarmos a compaixão
e uma atitude altruísta guiarem as nossas vidas, seremos capazes
de alcançar grandes coisas — algo que as outras formas de vida não
são capazes de fazer. Se formos capazes de usar esta preciosa forma
humana de uma maneira positiva, isso terá valor a longo prazo. Então,
a nossa existência humana se tornará verdadeiramente preciosa.
Entretanto, se usarmos o nosso potencial humano, a capacidade do cérebro,
de maneiras negativas, para torturar pessoas, explorar os outros e causar
destruição, então a nossa existência humana
será um perigo para nós mesmos no futuro, bem como para as
outras pessoas imediatamente. A existência humana, se usada destrutivamente,
tem o potencial de aniquilar tudo o que conhecemos. Ou ela pode ser a fonte
para nos tornarmos um Buda.
Até agora, não avançamos muito no nosso processo
espiritual. Pergunte a si mesmo: “Que ações saudáveis
eu tenho feito até agora, que práticas tenho exercido para
domar a mente e me tornar confiante no futuro?” Se você não
encontrar nada que poderia lhe dar uma sensação de certeza
em relação ao seu destino futuro, então todo o ato
de comer para manter a sua vida até agora é bonito, mas um
desperdício. Como diz o poeta indiano Shantideva do século
VIII, a única razão do nosso nascimento teria sido simplesmente
causar dor e dificuldade à nossa mãe; não teria servido
para nenhum outro objetivo.
Shantideva diz que, tendo conseguido esta preciosa forma humana, eu
seria estúpido se não meditasse e acumulasse virtudes. Se,
por preguiça, eu continuar adiando a prática, no momento
da morte carregarei o peso do grande remorso e da preocupação
com os sofrimentos que terei de suportar nas formas inferiores de existência.
Se, tendo obtido uma existência humana tão valiosa, nós
a desperdiçarmos, então seria como ir à terra das
jóias e voltar com as mãos vazias. Reflita sobre o fato de
que todos os grandes mestres do passado que alcançaram a iluminação
em uma única vida — Nagarjuna, Asanga e grandes mestres tibetanos
como Milarepa — tiveram exatamente a mesma vida humana que nós obtivemos
agora. A única diferença entre nós e eles é
que não temos a iniciativa deles. Meditando sobre a raridade das
nossas circunstâncias, podemos cultivar uma motivação
semelhante.
Embora um cachorro possa viver em um lugar onde o Dharma floresce,
ele não pode beneficiar-se ativamente disso. Os animais são
ainda mais fortemente guiados por ilusões e não têm
a nossa capacidade de escolher entre diferentes tipos de comportamento.
Eles se entregam mais fàcilmente a ações e a pensamentos
negativos, como a raiva e o desejo, e têm mais dificuldade com as
ações virtuosas. Se eu renascer
como um animal ou qualquer outra forma inferior de existência,
como terei a oportunidade de praticar o Dharma? É muito difícil
acumular virtudes, eu estaria continuamente acumulando ações
não-virtuosas e assim, até mesmo após a morte, eu
estaria girando em uma reação em cadeia de constantemente
renascer nas formas inferiores de existência. Se for o caso de que
até uma ação negativa momentânea tem o potencial
de causar renascimento nas formas inferiores de existência por inúmeras
eras, então, como conseqüência de infinitas ações
não-virtuosas que acumulei no passado, como posso duvidar que renascerei
em formas inferiores de existência? Uma vez que você renasce
nos domínios inferiores de existência, mesmo que o karma que
causou este renascimento possa ser exaurido pelos sofrimentos que você
suporta, quase não há esperança de se libertar desses
domínios inferiores porque, em um ciclo vicioso, você estará
se entregando a ações negativas que causarão outro
renascimento ainda mais inferior. Tendo refletido sobre a dificuldade de
obter tal existência humana e refletindo sobre a estupidez de desperdiça-la,
você deveria tomar a decisão de fazer o melhor uso de sua
vida empreendendo a prática do Dharma.
Normalmente, os Budistas dizem que a nossa existência humana
comum requer, como sua causa principal, a pura observação
da ética em uma vida anterior. Além disso, especialmente
para alcançar uma forma humana com a capacidade de praticar o Dharma,
é muito importante que o ato ético em si seja completado
com outras ações, como a generosidade e as e orações
evocativas, na vida anterior. Se você levar isso em consideração,
vai descobrir que é muito raro que alguém possua todos esses
fatores. Pensando na raridade da sua causa, você perceberá
como é difícil obter uma preciosa forma humana.
Se você comparar a existência humana com outros tipos de
existência, tal como a dos animais, existem muito mais animais e
insetos do que humanos. Mesmo dentro da existência humana, uma pessoa
cuja vida seja dotada de tempo suficiente e de oportunidade para praticar
o Dharma é realmente muito rara. Se você entende a importância
desta preciosa vida humana, então todas as outras compreensões
virão naturalmente. Se alguém, que tem ouro em sua mão,
atira-o fora e depois reza para conseguir mais ouro amanhã, essa
pessoa tornar-se-ia alvo de risadas. Do mesmo modo, embora possamos estar
idosos e fisicamente fracos, somos muito superiores em nossa capacidade
de praticarmos o Dharma do que outros seres sensíveis. Podemos,
pelo menos, recitar o mantra do Bodhisattva da Compaixão, OM MANI
PADME HUM. Mesmo se uma pessoa está no momento de morrer, ela ainda
tem a capacidade de pensar e de cultivar pensamentos virtuosos.
As atividades do Buda — desde que ele começou a cultivar o desejo
de ajudar outras pessoas até a acumulação de mérito
e a obtenção final da iluminação — foram todas
realizadas por amor a outros seres sensíveis. O bem-estar de outros
seres sensíveis se classifica em dois tipos: o bem-estar temporário,
que é a obtenção de um renascimento favorável,
e o bem-estar definitivo, que é a obtenção da libertação
e do estado onisciente. Todos os ensinamentos associados à obtenção
de um renascimento favorável no futuro são considerados como
pertencentes à categoria de pequeno alcance. Quando falamos da nossa
meta definitiva, distinguimos dois tipos: libertação do sofrimento
e onisciência. Todos os ensinamentos relacionados à prática
para alcançar a libertação pessoal são ensinamentos
de médio alcance. Para este objetivo, praticantes da categoria de
médio alcance envolvem-se na prática da ética, da
concentração e da sabedoria e, depois, eliminam as ilusões
e alcançam a libertação do sofrimento e do renascimento.
Todos os ensinamentos que delineiam as técnicas para a obtenção
da onisciência da Fraternidade Búdica, incluindo tanto o veículo
sutra quanto o tântrico, estão relacionados aos praticantes
de grande alcance. Um ser da categoria de grande alcance é alguém
cuja mente é motivada por grande compaixão por todos os outros
seres sensíveis e que deseja alcançar a iluminação
para o bem deles. Assim, um grupo só consegue pensar em uma vida
futura; estas são pessoas de pequeno alcance. As pessoas do segundo
grupo não estão preocupadas apenas com os assuntos da vida
futura, são capazes de pensar em algo mais distante, na libertação
do renascimento; estes são seres da categoria de médio alcance.
Outras pessoas não se ocupam apenas com o seu próprio bem-estar;
são mais corajosas. Interessam-se também pelo bem-estar de
outros seres sensíveis; estes são seres da categoria de grande
alcance.
Tsong-kha-pa diz que, embora dividamos a prática em três
tipos: a prática de alcance inicial, a de médio alcance e
a de grande alcance, as duas primeiras estão incluídas nas
práticas de grande alcance, porque são como uma preparação
para a prática de grande alcance. Quando treinamos as nossas mentes
para compreender a importância da nossa preciosa vida humana e a
sua raridade, decidimos tirar proveito disso. Os nossos corpos, compostos
de carne, sangue e ossos, são como a bananeira, que não tem
cerne, e são a fonte de todo tipo de sofrimento físico. Conseqüentemente,
não deveríamos nos preocupar tanto com os nossos corpos.
Ao contrário, seguindo o exemplo dos grandes bodhisattvas, deveríamos
tornar o nosso nascimento humano significativo e usarmos os nossos corpos
para o beneficio de outros seres sensíveis.
Em outras palavras, oportunidades preciosas e raras nos cercam e deveríamos
reconhecer o seu valor. Obtivemos esta preciosa forma humana dotada com
estas características especiais. Se for para desperdiçá-la
entregando-se simplesmente aos assuntos e às ações
triviais, seria triste. Tendo compreendido o valor da preciosa forma humana,
é importante tomar a decisão de capitalizar e utilizar isso
para a prática do Dharma. Caso contrário, dificilmente haveria
qualquer diferença entre as nossas vidas como seres humanos e aquelas
dos animais.